Por José Mattos e Silva
J.M.S. – Como é que surgiu esta necessidade ou
interesse de fazer este livro?
P.B. – Este livro que se chama “Domesticália” é para os empregados que se reconhecem nos patrões. Eu nunca posso dizer ou perceber como certas coisas me acontecem. Ninguém tem bem noção. Se eu às vezes olhar para trás, e já me aconteceu tanta coisa ao longo da vida, tanta coisa e tão variada, tão curiosa e imprevisível, que eu diria que para já há o destino que manda em nós e que está a trabalhar para nós. E, depois, a conjuntura das situações que à nossa volta nos leva a fazer coisas que não estávamos à espera. Não vou falar agora porque é que comecei a escrever livros e com o sucesso que foi reconhecido por muita gente, porque no fundo em 17 anos escrevi 12 livros e continuam a aparecer razões para escrever. Na minha carreira profissional, na sequência dum curso de Germânicas que tirei nos anos 60, nunca desempenhei a minha função nessa área. A minha carreira profissional foi toda desenvolvida no Ministério da Cultura e, nesse período, há 30 anos, o que efetivamente a burocracia me obrigava a fazer porque a cultura que é uma atividade tão importante porque tem aquela dimensão dumas pessoas que são bonitas e que cheiram bem. A cultura por si tem sensibilidade, é assética na vida. Não tem a ver com outros aspetos. Eu fiz uma carreira que me permitiu ver o que se fazia com a cultura em Portugal e posso dizer que não gostei muito porque desenvolvi uma cultura não muito profunda. Sempre com os olhos postos na cultura, sempre esmagada com a burocracia, comecei a escrever livros numa linha que gosto muito e este livro, que agora surge, vem nessa linha com uma certa coerência.
J.M.S. – Durante algum tempo escreveste para relembrar algumas formas de estar em sociedade o que, no fundo, tinha mais a ver com os patrões do que com os criados. Agora estás a fazer algo que consiste em atuar sobre um nível mais abaixo na escala social. Será que consideras que os patrões não têm as bases para formar o seu pessoal doméstico e para não serem os patrões a sentirem-se desconfortáveis nessa formação de protocolo, seres tu a ensinares o pessoal doméstico?
P.B. – Quando aparece a palavra protocolo eu aceito-a mas acho-a um pouco “rafiné”, um pouco pretensiosa. São aspetos de boa educação e essa boa educação aplica-se a empregados e a patrões. E essa bifurcação leva-nos exatamente para o conteúdo que se chama Domesticália porque é um nome criativo. O comportamento das pessoas numa casa, sejam patrões ou empregados, tem de se basear na boa educação. Todavia há um “teatro” doméstico em que o papel que representam os patrões é diferente do papel que representam os empregados. A dimensão humana é a mesma mas financeiramente a discrepância é total porque uns ganham muito e os outros vivem com grandes dificuldades, embora vão sobrevivendo. São pessoas que, para mim, têm uma dimensão humana. Não há dúvida que as regras que dou sobre este comportamento têm a sua origem desde o tempo dos escravos e, depois, dos criados que eram pessoas que eram criadas em casa dos ricos e que, por isso, viviam bem. Acabo por concluir que a sua dimensão é a mesma mas socialmente são vistos de outra maneira. A avaliação profissional é discriminatória. O papel que nós representamos, numa casa, é como o dos atores num palco. Eles representam um papel de uma coisa ou de outra. Há muitas personagens que se podem representar num palco. Nós somos meros atores. É evidente que as regras de comportamento dos empregados domésticos têm semelhanças com as regras dos patrões que vemos nos livros de protocolo. Neste caso do presente livro vemos listagens dos comportamentos dos empregados domésticos, daquilo que têm que cumprir para serem considerados eficientes no seu posto de trabalho, não só pelos patrões mas pelo ambiente social que os vai envolver. Antigamente havia toda uma hierarquia que hoje mudou muito, porque efetivamente há muitas pessoas que têm apenas empregadas à hora, as denominadas “mulheres a dias”, embora estas continuem a ser pessoal doméstico. Fazem parte do pessoal doméstico não especializado. No I.N.E. e no Ministério do Trabalho vem a a sua designação como “pessoal não qualificado”. Nunca houve uma escola para empregados domésticos e, por isso, é que surgiu a oportunidade de escrever este livro. Foi porque fui convidada, por uma empresa, para dar formação sobre esta temática. E de tal maneira o fiz com gosto e com entusiasmo que os meus apontamentos se tornaram na base deste livro.
J.M.S. – Lembro-me que há alguns anos estava num casamento onde estavam vários “chauffeurs”, nomeadamente o do meu avô, e aproximei-me da zona onde eles se encontravam e ouvi as suas conversas e de facto o que eles debatiam era: “eu sou motorista do presidente do conselho de administração da empresa A, eu sou motorista do presidente da B, etc.” e andavam a comparar-se, não em função do que eles eram, propriamente, mas de quem eram os seus patrões. Tens essa sensação?
P.B. – Tenho. É uma espécie de sentido de classe. Não há livros sobre isso, sobre essas histórias. Há uma medição de forças, mas isso é humano. Quando eu digo que eles são atores e representam o que lhes dizem na sua formação, quando vem o patrão eles recuam, olham para baixo. Embora eles sejam tão próximos da família, eles são da família. Às vezes eles não podem representar esse papel. Mas essa matéria é mais para sociólogos e psicólogos. Não é para mim, mas eu ao abordá-la estou a levantar um problema de alguma pertinência e, sobretudo, isso confirma e completa um facto surreal que é esta ser a profissão com mais sucesso e mais procura no mundo inteiro. Eu vim agora do Mónaco onde tenho uma boa relação com uma russa que faz essa função com o apoio do Príncipe do Mónaco, numa Academia que dá formação a empregados de pessoas de altíssimo estatuto financeiro. O que eu quero é ser útil aos empregados. Os patrões se lerem o meu livro não perderão o seu tempo porque eu coloco lá as “artes da mesa” e as “artes de receber”. Saber receber é de facto uma questão de boa educação. Eu falo do protocolo da mesa, do protocolo social. Nada mais vale desenvolver porque o livro é útil, é curioso. Eu não vou abandonar este assunto. Já estou com propostas para trabalhos de desenvolvimento, enfim estou satisfeita e sobretudo tenho imensa consideração pela revista Eles & Elas, da nossa amiga Maria da Luz de Bragança, que me deu esta oportunidade e, para mais, pela mão de uma pessoa que eu tenho a certeza que me vai captar e até, se calhar, estar de acordo comigo.
J.M.S. – Eu costumava alugar, no Verão, um casa no Algarve que, regra geral, era a mesma, na zona da Prainha. Procurava fazer o aluguer no princípio do ano, quando tinha uma perspetiva de quando poderia ter férias. Eu tinha uma governanta, que me conhecia desde pequeno, que me acompanhava, e à minha família, nas citadas férias algarvias. Houve um ano, contudo, em que me atrasei no aluguer e não consegui obter a casa habitual, mas apenas outra de qualidade bastante inferior. Ao fim de uns dias nessa casa a minha governanta virou-se para mim e disse- -me “Menino Zé, fica já sabendo que eu não volto a uma casa com este baixo nível”. Ou seja, ela era mais “snob” do que eu em relação à casa. Como interpretas isto?
P.B. – Isso é de facto curioso e faz-me pensar num fator que é absolutamente verdade. Passou-se o mesmo com amigos meus do Norte do País que iam para o Algarve e, por vezes, ficavam em casas que eram péssimas. Acho curioso ouvir esta menção da governanta, a qual marcava a diferença de todas as casas onde tinha estado ou trabalhado. Não sei se é nos anos 60 ou 70 quando houve o grande surto de emigração, houve um certo abandono de regiões mais interiores do nosso país. Muito do nosso património urbano arquitetónico foi muito mal tratado. O português não tem o culto do património. Mas trabalha bem. Os portugueses quando trabalham na vida doméstica são lindamente bem recebidos porque trabalham com mais responsabilidade lá fora do que cá dentro. E eu tenho essa experiência por conviver com pessoas em França, no Mónaco e, também, noutros países, onde o pessoal doméstico português tem imenso crédito.
J.M.S. – Houve uma certa rutura nas relações sociais ao nível de empregador e empregado depois do 25 de Abril de 1974. Notas que os 40 e tal anos que, entretanto, já passaram “amoleceram” essas relações e que hoje, em dia, já há algum regresso às relações anteriores ao 25 de Abril ou notas que ainda há alguma clivagem, alguma dificuldade de aproximação, entre empregadores e empregados?
P.B. – Não. Nunca senti isso. Não há estatísticas. Eu estava em Angola nessa altura e, quando regressei a Portugal, o meu patamar de vida, os meus contactos com os empregados da família mantiveram-se. Não houve reações inesperadas.
J.M.S. – O 25 de Abril teve mais influência nas empresas do que, propriamente, na parte doméstica?
P.B. – Sim. Na indústria e no comércio. Os empregados domésticos vivem nas nossas casas. Pode haver ódio e até pode haver crimes e maus tratos mas, basicamente, à boa maneira portuguesa há uma certa ternura no relacionamento. Uma casa com empregados marca a diferença e revela a cultura e o respeito mútuo entre patrões e empregados. Também há outra área, a hotelaria, mas hoje em dia as escolas de hotelaria são para aqueles que vão para exercer a profissão em hotéis e restaurantes. A origem do conhecimento e da formação deles é nas casas e nas vidas domésticas de séculos e séculos atrás. Os primeiros hotéis aconteceram no período dos Jogos Olímpicos. Mas a hotelaria tem um historial que vai absorver muito ao bom comportamento dos palácios das grandes famílias e dos palácios reais de toda a Europa. França e Inglaterra sempre foram muito importantes, nessa formação. É uma história fascinante. Não é uma profissão que eu gostasse de ter, porque não queria.
J.M.S. – Falaste nas relações entre patrões e empregados. Havia, sobretudo nas famílias mais tradicionais, uma grande cultura de lidar com o pessoal doméstico (eu ainda conheci criadas dos meus bisavós paternos) e, portanto, havia essa proximidade. Entretanto, é sabido que o dinheiro mudou de mãos. Essas famílias mais tradicionais já não são tão empregadoras como eram no passado. Surgiu uma nova elite, financeiramente muito mais capaz mas, eventualmente, com muito menos bases educacionais. Notas essa falta de cultura de proximidade com os empregados? No fundo, é aquele velho ditado: “não sirvas a quem serviu…”. Até que ponto é que essa situação interfere nessas relações de proximidade? Tens alguma experiência neste domínio?
P.B. – Foste levantar uma questão que é justamente essa, o “não sirvas a quem serviu…”. Tem um cunho de mau gosto porque tem o pressuposto que servir a quem serviu levanta, de volta, reações que os deitam abaixo. Eu não quero pensar dessa maneira. Eu não quero levar a coisa por esse lado porque sempre houve gente agressiva. Não vou avaliar os bons e os maus patrões. Um empregado recebe um ordenado, pelo que é um funcionário como outro qualquer. Ele tem que descontar para a Segurança Social, pode queixar-se no tribunal, pode ganhar no tribunal e a relação pode ser passiva ou pode ser superagressiva. Portanto, os adjetivos têm outras “nuances”, mas é muito interessante e eu gostei muito de falar contigo porque levantaste problemas que merecem ser pensados e é bom que fiquem aqui registados para que alguém, que leia esta entrevista, tenha capacidade de estudar melhor esses assuntos.
Leia o Artigo completo na Eles&Elas 301 – Nas Bancas