Se um dia alguém perguntar por ele, diga que viveu para fazer história. Salvador Sobral cantou e emocionou o mundo. Com “Amar Pelos Dois”, uma canção escrita pela irmã, Luísa, levou Portugal a vencer pela primeira vez o Festival Eurovisão da Canção. O rapaz que cantava nas ruas e em pequenos bares tem agora multidões apaixonadas e ansiosas por o ouvir – conquistou o seu lugar no mundo e nos nossos corações.
Portugal já parecia ter desistido há muito tempo de verdadeiramente tentar ganhar o Festival Eurovisão da Canção. Ao longo de quase 50 anos de participações, o nosso país tentou tudo. Ainda na década de 60, quando era a antena da Emissora Nacional que ditava as tendências da música portuguesa, tentámos ganhar com uma “Oração” de António Calvário, com um jovial ié-ié de Madalena Iglésias, ou com a raiva cantada por Simone de Oliveira na “Desfolhada”. Da década de 70, continuámos a apostar nos grandes intérpretes do nosso país: Tonicha, Fernando Tordo, Carlos Mendes, Paulo de Carvalho, artistas que ainda hoje têm carreiras ativas que o público muito acarinha. Já a cores, na televisão dos anos 80, os portugueses procuraram alcançar o triunfo com José Cid, Carlos Paião, Doce, Adelaide Ferreira ou Da Vinci, sendo impossível esquecer também a icónica saia verde-alface com que a irreverente jovem Dora cantou “Não Sejas Mau Para Mim”. Foi a década da libertação do povo português, já mais ambientado aos novos ares democráticos e desejoso de viver tudo aquilo que décadas de ditadura impossibilitaram de experienciar. Fora do festival, foi a década do rock. Dentro da competição, foi o tempo da pop portuguesa. As canções que saíram daqui ainda hoje são cantadas por todos nós – quem não sabe o “Playback”, o “Bem Bom” ou o “Conquistador”? – mas a Europa continuou a não ser generosa com Portugal. Na década de 90, apareceram grandes nomes do panorama musical português: Dulce Pontes, Anabela, Sara Tavares, Lúcia Moniz. Elas e outros procuraram finalmente o triunfo. Portugal esteve perto de o conseguir, em 1996, quando Lúcia Moniz conquistou um gracioso sexto lugar. Depois de muitas mais tentativas, parecia ser consensual que Portugal, devido à sua reduzida importância estratégica no contexto europeu, à falta de vizinhança e de poder económico, jamais iria vencer a Eurovisão. Essa estaria destinada a ser ganha pelos países do Leste ou pelos da Escandinávia. Até que se fez arte. Luísa Sobral fez a melodia e escreveu o poema, Salvador Sobral deu a voz e o sentimento à canção “Amar Pelos Dois”. Tem a magia de um filme de animação e a tristeza inspirada em Édith Piaf. Tem um toque de bossa nova e a universalidade do jazz. Tem a nossa saudade, o nosso sofrimento, mas também a nossa esperança na força agregadora do amor.
Cantada em português, numa edição marcadamente dominada pelas canções pop comerciais interpretadas na língua de Shakespeare, a canção de Salvador e Luísa aniquilou toda a concorrência, ao ser a mais votada pelo grande público e também pelo júri, composto por profissionais da música. Somou 758 pontos, definindo um novo recorde de pontos na história do Eurofestival. Como é que tanta simplicidade e inocência alcançam um feito tão grande? Salvador sabe a resposta: “a música não é fogo-de-artifício; a música é sentimento”. Na plateia, na sala dos artistas, na zona de imprensa – muitas foram as pessoas que se emocionaram ao ouvir Salvador Sobral cantar, sozinho em palco e vestido de negro, com o seu olhar sempre distante, mirando o sonho, a canção de todos nós. O irmão de Luísa Sobral tem 27 anos e uma vida já bastante preenchida. Quis estudar Desporto mas acabou por enveredar pela Psicologia, área que nunca o satisfez tanto como a Música. A paixão pelo jazz e o gosto em contar histórias através do seu canto levaram-no a querer fazer dos palcos a sua vida. Tentou a sorte num concurso de talentos da SIC, experiência que ele próprio prefere esquecer. Depois, estando em Erasmus em Maiorca, começou a cantar em bares e, mais tarde, em Barcelona, experimentou cantar pelas ruas. Aí não teve dúvidas – tinha descoberto o seu estilo de vida. Participou em alguns pequenos projetos musicais, cantou em festivais tanto em Portugal como em Espanha, e foi de
dicando o seu tempo à composição de temas originais, os quais foram depois reunidos num álbum lançado em 2016. Se inicialmente passou despercebido, o disco “Excuse Me” saltou para os tops de vendas logo após a vitória dele na maior competição musical do mundo. Mas foi a irmã que lhe deu a possibilidade de passar pela experiência que lhe mudaria radicalmente a vida. Ao convidar Salvador para cantar “Amar Pelos Dois” no Festival RTP da Canção, Luísa não sabia que estava a reunir as condições para nascer uma obra prima e um momento histórico para Portugal. Quando ambos foram selecionados, a 5 de março, no Coliseu dos Recreios, como representantes de Portugal na Eurovisão, Luísa pensou secretamente que estava a eludir os portugueses e a participar numa farsa – o irmão está doente, precisa de um transplante de coração, e não pode ausentar-se de Portugal. No entanto, tudo se acertou para que Salvador conseguisse estar sete dias na distante Ucrânia, onde tão brilhantemente nos representou e de onde voltou bem e feliz. Correu tudo bem. O troféu está connosco, os irmãos Sobral têm a carreira lançada, Portugal está feliz, a Europa está rendida. Salvador Sobral venceu um gigante desafio, mas a vida já o encarregou de enfrentar mais outro. O coração dele, adoentado, amou por todos nós; é tempo de nós, agora, o apoiarmos a ele.