Naquelas brincadeiras espantosas da vida que presidem
às melhores das arbitrariedades, dei comigo
arregimentada numa viagem para o Porto, dentro
de uma carrinha velha, de amortecedores espatifados, tão
cheia de disfunções como de figuras notáveis. E claro que
tudo isto aconteceu, sem qualquer sombra de dúvida, para
que eu conhecesse, finalmente, de adulto para adulto, a mitológica
Maria da Luz de Bragança. Quando eu tinha vinte
anos e comecei a estagiar no saudoso O JORNAL, os meus
colegas de redacção falavam-me sempre dela com ares sonhadores
e cobiçosos – insistindo, mais que uma vez, que
nós as duas devíamos conhecer-nos, porque éramos Bichos
Iguais.
E depois passaram muitas décadas, até eu já somar quatro
netos.
Nunca sabemos o que é que nos atrai nas pessoas, mas
a beleza das amizades electivas é exactamente essa. No dia
em que o Bicho Igual me apareceu pela frente, não houve
nada que não se tornasse possível. Só me lembro de irmos
CARTA AO LEITOR
A Luta Continua
todos trabalhando pela autoestrada fora, e da Maria estar
sentada à minha frente. Ao fim de poucos minutos, encostei-
me ao banco dela para podermos falar melhor. Falar, e
falar, e falar. Falar de nós, do nosso trabalho, dos nossos sonhos
de mudar o mundo com medidas criativas ainda por
inventar, falar de tudo. E imaginamos o que aconteceria se
investíssemos todas estas ideias no ELES E ELAS e na DIPLOMÁTICA,
e se uníssemos esforços para forjar um país
cheio de pessoas informadas, divertidas, e ainda a tempo de
sacudirem de vez a sua própria letargia crónica.
Se durante essa conversa mais ninguém acreditou em
nada, a Maria e eu acreditamos. E, em celebração dos 37
anos da primeira Revista de Social que apareceu em Portugal
depois do 25 de Abril – um Elogio do Luxo saído directamente
dos sonhos de Rimbaud, e por maioria de razão
perante as tristes facilidades que pululam para aí agora,
cheias de tudo aquilo a que a Maria não fez nunca a menor
das concessões – aceitei com muito prazer e orgulho
vir trabalhar com ela todos os dias, para sob a sua batuta
rirmos, vituperarmos, e esticarmos o nosso esforço conjunto
para que a qualidade e a independência mediáticas não
deixem nunca de ser um direito e um dever.
Agora que todos os dias vejo a Maria a trabalhar, fico
pasmada com esta sua resiliência de aço. Fico suspensa nesta
sua capacidade indestrutível de continuar a organizar a
redacção, por muito que o Caos Português contra-ataque
na voragem de transformar qualquer sonho em pesadelo,
com castelos de burocracia e de silêncio de onde nem o
Kafka conseguiria sair. Portugal precisa de muitas, muitas
mais mulheres assim. Deixem voar a Maria. A luta contra
a parvoíce e contra a esperteza saloia continua, e enquanto
tivermos esta lutadora connosco mais cresceremos, mais
nos dignificaremos, e melhor seremos recordados como
aqueles que se recusaram a desistir.
Muito obrigado, garota.
Clara Pinto Correia